Memória
Renato Russo
Do inferno ao céu
Na semana em que o roqueiro faria 40 anos, amigos contam quando e com quem ele contraiu Aids e a família relata a história de Giuliano, o filho que chegou a ser noticiado como adotado
Cláudia
Carneiro e André Barreto
Foto: Pedro Agilson
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O
ícone Renato Russo tinha um relacionamento
difícil com os pais: Dona Carminha só
soube que o filho tinha Aids pela TV
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O
cantor e compositor Renato Russo sempre surpreendeu.
Aos 18 anos, fez a mãe empalidecer ao revelar que era
homossexual. “Mãe, não vou casar com a Ana Paula, porque
acho os homens interessantes”, admitiu ele, referindo-se
à então namorada, uma fotógrafa, filha de um almirante.
“Meu chão foi lá embaixo”, lembra hoje a professora
aposentada Maria do Carmo Manfredini, 62 anos. “Parei
um minuto para rezar: Meus Deus, o que faço agora?”
Dona Carminha, como é conhecida, então respondeu a Russo,
angustiado com o silêncio da mãe: “Está bem, filho,
mas só não me traga homem para dentro de casa”.
Renato
Russo surpreendeu os pais, amigos, fãs e a música brasileira
não apenas enquanto viveu. Morto há três anos e meio,
o líder da banda Legião Urbana permanece aclamado como
mito do rock nacional. Na segunda-feira 27, faria 40
anos. Mesmo sem existir mais, a Legião é o grupo de
rock que mais vende discos. Este mês, seu CD Acústico
MTV, lançado em outubro de 1999, com um milhão de cópias,
está em segundo lugar entre os mais vendidos – perde
para Sandy & Júnior, em São Paulo, e Roberto Carlos,
no Rio. De 1995 até agora, a Legião vendeu 10,2 milhões
de cópias e os três discos-solo de Russo, 2 milhões.
Renato Russo ferve em 140 sites da internet sobre a
Legião.“Garotos
de 13 anos o estão conhecendo e virando fãs fervorosos”,
diz Simone Assad, jornalista e fã que coordenou, de
Nova Friburgo, no interior do Estado do Rio, a edição
do livro Renato Russo de A a Z, lançado em janeiro pela
Editora Letra Livre, um dicionário com frases
do cantor, com 453 verbetes. O jornalista carioca Arthur
Dapieve prepara para setembro uma biografia. Seus pais,
o funcionário aposentado do Banco do Brasil Renato Manfredini,
75 anos, e Maria do Carmo, lançarão um livro com os
rascunhos de quando o filho compunha.
Boa
parte dos manuscritos continuarão inéditos, se depender
do casal Manfredini, responsável pelo espólio do filho.
No apartamento do artista em Ipanema, no Rio, os pais
guardam pequenas peças de teatro e letras inéditas.
Os diários que escreveu até o fim da vida, em inglês,
são intocados. “Enquanto vivermos e tivermos controle
sobre as coisas de Júnior (Russo era Renato Manfredini
Júnior), ninguém mexe nos diários”, diz a mãe. O casal
prevê problemas com a biografia escrita por Dapieve.
“Não
autorizaremos que o livro trate de coisas íntimas da
vida de Júnior”, avisa Carminha. Dapieve acredita que
superará a resistência dos pais. Segundo o jornalista,
a carência de Russo levou-o a se entregar ao álcool
e às drogas. “Ele tomava Cointreau em copo de requeijão
em um só gole”, conta.
Foto: Pedro Agilson
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Antes
de morrer, pediu ao pai provas de amor
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“Quando
namorava um rapaz chamado Lui, tentou suicídio para
chamar a atenção dele.” Nos últimos meses de vida, Renato
desistiu de tomar AZT. Uma amiga, que prefere não se
identificar, acrescenta que, um mês antes de morrer,
o roqueiro pedia a presença do pai:
“Ele
queria provas do amor do pai e de que ele o aceitava
como gay e alcoólatra.”
Renato
Manfredini mudou-se para o Rio ao saber da doença, dois
meses antes de perder o filho. “O Júnior carregava o
mundo nas costas”, diz ele. Não contou à mulher o que
o próprio filho não ousara revelar à mãe. Ela soube
pela tevê que o filho tinha Aids, horas depois da morte
de Renato Russo, em 11 de outubro de 1996. “À noite,
ouvi na tevê: ‘Morreu hoje de Aids o cantor Renato Russo’.
Foi um choque.
De
manhã, declarei que meu filho tinha morrido de anorexia
nervosa.” O respeito dos pais por sua opção sexual aproximou-o
mais da família. Em 1988, ele assumiu publicamente a
homossexualidade. A mãe não queria. “É para lutar contra
o preconceito que vou fazer isso, mãe”, disse ele.
DEPRESSÃO
No último mês de vida, Russo praticamente não comia.
Só bebia água de coco. Saul Bteshe, 50 anos, seu médico
por oito anos, conta que, nos primeiros meses após descobrir
a doença, o artista reagiu com otimismo. “Perto de sua
morte, caiu em depressão”, conta o médico, que tratava
do cantor antes de ele ser infectado. Quando o cantor
foi a seu consultório pela primeira vez, Bteshe desconhecia
a Legião. “Ele perguntou se eu não o estava reconhecendo”,
lembra Bteshe, que o acompanhou em shows na fase avançada
da doença.
Russo
soube que tinha Aids depois de ter namorado Robert Scott
Hickmon, que o roqueiro conheceu em Nova York, em novembro
de 1989. Morador de San Francisco, Scott era gay e tinha
um namorado vítima da Aids. Russo e Scott viveram juntos
alguns meses no Brasil, antes de o americano voltar
para os Estados Unidos, no final de julho de 1990, quando
usaram heroína juntos. “Foi fogo. O namorado do Scott
estava em estado terminal de Aids e mesmo assim o Renato
se envolveu com ele”, diz a amiga Leonice de Araújo
Coimbra, a Léo, que estava com Russo em Nova York, em
novembro de 1989, quando o romance começou. Em 1990,
ela recebeu o músico em sua casa, em Brasília, que segurava
o resultado de um exame. Chorando, abraçou forte a amiga
e desabafou: “Sou HIV positivo”. Léo afirma: “Renato
tinha certeza que pegou Aids do Scott. Ele foi embora
e ninguém soube mais dele”. Russo nunca assumiu a Aids
publicamente. Em 1992, perguntado por um jornalista,
disse: “Não estou com Aids, que pergunta idiota”.
Cláudia
Carneiro e André Barreto
Foto: Felipe Barra
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“Ele
disse que era homossexual aos 18 anos. ‘O que
faço?’, pensei. Mas disse: ‘Está bem, mas só não
me traga homem para dentro de casa’.’’ Maria do
Carmo Manfredini
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Foi
inspirado em Léo que Russo criou “Eduardo
e Mônica”, seu primeiro grande sucesso. “Chegamos
a brigar por telefone porque ele queria parar de tomar
os remédios que o mantinham vivo”, conta
ela, artista plástica, 41 anos. Léo morava
no Equador e fez as pazes com Russo um dia antes de
sua morte. Ele lhe telefonara para ler a letra de “Uma
Outra Estação”, que havia composto
para a amiga – à época, ela morava
perto dos vulcões citados na música. No
dia seguinte, Léo voltou a ligar. Só o
ouviu na gravação da secretária
eletrônica. Renato Russo tinha morrido. A notícia
foi dada a ela pelo ex-marido, o jornalista Geraldinho
Vieira, também amigo de Russo.
Outro
amigo, o empresário musical Luiz Fernando Borges,
lembra que, no início de 1996, Renato fez uma
despedida. Tomou um “porre homérico”,
bebendo cinco dias sem parar. Logo depois, passou a
tomar o coquetel anti-HIV. Borges nunca ouviu Renato
dizer que tinha medo da morte, mas se irritava com os
medicamentos. “Ele tinha muitas dores no estômago
e enjôos”, recorda. Até hoje, ele
vai ao apartamento do amigo. “O quarto dele está
igualzinho. Os móveis, os quadros, está
tudo lá.” Parte disso deve ser transferido
para o memorial do cantor que será construído
em Brasília. Borges teve autorização
para fazer um documentário sobre Russo.
O
FILHO Um mês antes de completar 29 anos, no
Rio de Janeiro, Russo telefonou para a mãe em
Brasília e fez suspense sobre uma novidade. Ela
achou que era sua mudança para a Inglaterra.
Russo tinha o sonho de gravar um disco lá. A
surpresa veio a ser revelada na data do nascimento de
seu filho, na noite de 29 de março de 1989. Da
maternidade, ele ligou: “É menino, mãe!”
Giuliano ganhou nome de santo, como prometera na música
“Pais e Filhos”.
Quando Russo morreu, aos 36 anos, foi noticiado que o filho era adotivo. A família reafirma a história contada por ele, de que tivera uma relação fugaz com Rafaela Bueno, uma fã carioca. Os pais da moça não apoiaram a gravidez. Na primeira semana de vida, Giuliano foi para as mãos da tia de Russo, Maria do Socorro de Oliveira, que morava na Ilha do Governador, na zona norte do Rio. Rafaela morreu num acidente um ano depois. Na mesma época, o artista mudou-se da Ilha – onde morou com os avós, a tia e Giuliano – e quis criar o menino em seu novo apartamento, em Ipanema. Os pais o convenceram a dar a guarda de Giuliano. Com 11 anos, ele mora com os avós em Brasília, os quais considera seus pais.
Quando Russo morreu, aos 36 anos, foi noticiado que o filho era adotivo. A família reafirma a história contada por ele, de que tivera uma relação fugaz com Rafaela Bueno, uma fã carioca. Os pais da moça não apoiaram a gravidez. Na primeira semana de vida, Giuliano foi para as mãos da tia de Russo, Maria do Socorro de Oliveira, que morava na Ilha do Governador, na zona norte do Rio. Rafaela morreu num acidente um ano depois. Na mesma época, o artista mudou-se da Ilha – onde morou com os avós, a tia e Giuliano – e quis criar o menino em seu novo apartamento, em Ipanema. Os pais o convenceram a dar a guarda de Giuliano. Com 11 anos, ele mora com os avós em Brasília, os quais considera seus pais.
Juvenal
Pereira/AE
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Aos
11 anos, na primeira-comunhão”
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SEQÜESTRO
Os pais de Russo não permitem que o menino seja
fotografado. A proteção foi redobrada,
a conselho da polícia, quatro meses após
a morte de Russo. No apartamento do Bloco B da Superquadra
Sul 303 do Plano Piloto, em Brasília, onde Giuliano
morava desde o segundo ano de vida, Carminha recebeu
uma denúncia anônima por telefone. A pessoa
disse que Giuliano, então com 7 anos, seria vítima
de um seqüestro. Assustada, ela correu ao Centro
Educacional Maria Auxiliadora, onde o neto estudava,
a um quilômetro de sua residência. O avô
acionou o grupo anti-seqüestro da Polícia
Militar. A polícia detectou pistas sobre um plano
de seqüestro e descobriu que pessoas estranhas
chegaram a acompanhar os passos de Giuliano. A família
mudou de endereço.
Renato
Russo adorava crianças. A família argumenta
que, por isso, especulou-se que Giuliano seria filho
adotivo. Na mesma época de seu nascimento, a
tia de Russo levou para a casa da Ilha do Governador
um bebê de nome Thaísa. “Ela era o
xodó dele”, lembra sua mãe. Um dos
segredos que o músico compartilhava com a mãe
era o desejo de comprar uma casa e enchê-la de
crianças órfãs. Meses após
sua morte, a família descobriu atos generosos.
Seus pais foram procurados por um jovem paraplégico
desesperado com a morte do compositor. Relatou que desde
que perdera o emprego, recebia ajuda financeira do roqueiro
para manter seu tratamento. “Passeávamos
em Nova York em 1989 quando Renato tirou do bolso um
bolo de dinheiro para dar a um rapaz sentado na calçada,
que segurava o cartaz: ‘Sou soropositivo’”,
conta Léo. Isso aconteceu antes de saber que
era soropositivo. A generosidade de Russo era unânime
entre os amigos. A atriz Denise Bandeira, que foi sua
namorada antes de ele definir-se pela homossexualidade,
lembra que dar presente aos amigos era compromisso sério.
“Antes de um aniversário, ele fazia uma
pesquisa minuciosa sobre o presente mais adequado. Na
dúvida, comprava vários”, conta.
Para Denise, sua capacidade de ir de um extremo a outro
era incrível: “Ele podia se atirar ao chão
num show para 10 mil pessoas e depois, em casa, mergulhar
concentrado em sonetos de Shakespeare”.
Juvenal
Pereira/AE
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Bonfá
lança CD, Dado produz discos e Rocha deixou
a música profissionalmente. "O relacionamento
era difícil", diz Arthur Dapieve,
que escreve sua biografia
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Formado
em Jornalismo, aos quatro anos ganhou o primeiro disco,
dos Beatles. “Ele se trancava no quarto, colocava
som alto, e eu, no quarto ao lado, aprendi tudo de rock
com ele”, lembra a única irmã, Carmem
Teresa. Ela canta spiritual, blues e jazz, no grupo
brasiliense Spirituals de Porco. Três anos mais
nova, não escapava das rédeas dele. “Ele
era totalmente reacionário e protetor, coisas
de irmão mais velho”, recorda. A ausência
do irmão dói. “Não há
um dia que não ouço alguma coisa na rua,
uma música, ou vejo um filme, que não
tenha vontade de falar com ele.”
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